sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Formar para vencer, ou vencer, formando?

Quantas pessoas seguem, de facto, o futebol de formação, em Portugal? (Desde já assumo que não me conto entre essas.) E quantas, chegada a fase final dos campeonatos de escalões de formação, começam a afiar as garras, assanhados pela possibilidade de vencer mais uma prova que, para o que realmente interessa, vale menos que o dinheiro com que se manda fazer a taça? (Mas também não faço parte destas.) Nesses miúdos em fase de crescimento, enquanto jogadores e homens, fazem reflectir as paixões clubísticas, cegas e parciais até ao tutano, bem como as frustrações de uma época que tenha corrido mal aos graúdos.
Findo o campeonato, os adeptos do clube vencedor congratulam-se com mais uma vitória, fixam dois ou três nomes que deram nas vistas nas fichas dos jogos, e esquecem tudo na semana seguinte. Isto porque o que interessa, na verdade, são os seniores, e, para os seniores ganharem, não se vai lá com putos, nunca se vai lá com putos. É sempre preciso contratar uns 5/6 jogadores, mas de créditos firmados, logo caros, mas não se fazem omeletes sem ovos, alguém há-de pagar, que peguem de estaca e façam subir exponencialmente o potencial do plantel; ou, pasme-se, 2/3 miúdos estrangeiros que, nos seus campeonatos ainda mais periféricos que o lusitano, por obra e graça do espírito globalizante se evidenciaram também por cá enquanto grandes promessas do desporto-rei.
Que interessa se, ao se contratar esses miúdos, que merecem ser felizes, nada contra, se está a obstar a que os nascidos neste rincão possam ter, igualmente, ensejo de se mostrarem como tão ou mais promissores, quiçá certezas absolutas? E, no entanto, começa-se ou termina-se o veredicto por se declarar solenemente favorável a que os miúdos da formação tenham hipóteses. Só que é preciso ganhar, é preciso manter-se na primeira, é preciso subir de divisão, é preciso qualquer coisa que eles não podem garantir, nunca podem, os miúdos… mas, afinal, quem pode garantir seja o que for?
Não fica, porém, por aí, essa gincana contraditória de opiniões. Quando se começa a dar forma aos plantéis seniores da época seguinte, eis que logo surgem as sentenças inapeláveis: o clube devia apostar mais nos putos; devia haver mais gente da formação no escalão sénior; os estrangeiros não sentem a camisola e vêm apenas por dinheiro; abaixo as contratações sul-americanas, vivam os miúdos!… e, no entanto, continuam a faltar 5/6 jogadores…
E neste círculo vicioso andamos e permanecemos, e permaneceremos enquanto não se decidir ao certo o que se quer da formação.

A formação serve para vencer troféus que alimentem as salas menores dos museus, ou a formação deve servir acima de tudo para alimentar os plantéis seniores, para que estes consigam lutar, ano após ano, pelos seus objectivos, sem que o clube tenha de recorrer a meios de que não dispõe, hipotecando assim, no grande plano geral, as suas possibilidades de sucesso futuro em troca de um triunfo efémero no presente?
A própria palavra o indica: formar é fazer, construir, produzir, ou ir-se desenvolvendo, ir tomando forma, e desenvolvendo é a palavra-chave. Desenvolver competências, individuais e colectivas, físicas, técnicas, tácticas e, o que me parece ser muito, demasiado (porque, na realidade, é o que mais importa) negligenciado, intelectuais, para que, chegado à mesa dos adultos, o jogador possa responder assertivamente ao que lhe for solicitado pelo treinador. Formar, numa perspectiva ideal, seria pegar em mil miúdos com conhecimentos rudimentares do jogo e, findo o percurso, ter mil graúdos completamente capazes de o executar na sua plenitude. Assumindo que, na natureza do futebol, Lavoisier não manda, muito se perderá, e desses mil restarão apenas alguns, os que forem capazes de sobreviver à selecção natural. Falei de capacidade de execução do jogo, mas não entendo que isso seja apenas executá-lo tecnicamente. Para mim, mais importante, e mais crucial para aferir da qualidade de um jogador, é aqueloutro aspecto que referi: capacidade de responder às solicitações do treinador, mas sobretudo do jogo, de cada jogo, em cada momento desse jogo. É por aí que se define a linha que separa competência da incompetência: competente é aquele que sabe, sabe fazer, e sabe dar resposta a novos problemas. Não basta aos jogadores correr muito, receber, passar, fintar, driblar, rematar, defender agressiva ou contidamente. Competente é aquele que corre quando é preciso correr, que recebe com intuito de poder dar seguimento à jogada, que passa, finta, dribla, remata ou cruza, contém ou cobre o colega, avança a linha defensiva ou recua-a, quando assim deve ser, por ser a melhor opção. O mais competente é, no fundo, o que pensa melhor e depois executa com qualidade!
Por isso que formar não pode ser meramente padronizar, perpetuar nos jogadores ideias pré-concebidas sobre o que são as acções a realizar independentemente do contexto momentâneo: passa sempre para trás se estiveres de costas no meio-campo, nunca passes bolas lateralmente no meio-campo ou defesa, respeita sempre o movimento nas costas, bola perto da área é para dar chutão, ou que outras leis sagradas do arcaísmo futeboleiro existam. Padronizar é coarctar o pensamento, logo, padronizar é formar jogadores menos competentes. Não nos iludimos: esta apologia da competência não deixa de ser uma forma de formatação. Apenas difere por preferir exponenciar o campo de soluções ao serviço do jogador, ao invés de as reduzir a uma linha pré-estabelecida de comandos. A verdadeira busca pela competência é uma luta incansável para estimular e enquadrar a criatividade: incutir ao formando que nem sempre é necessário tirar um coelho da cartola para ser eficaz, e, simultaneamente, que a magia não é proibida, se usada para o bem.

Porém, nada disto parece acontecer em Portugal. A ideia que resulta do que se vê é que por cá se forma sem intenção de formar. Forma-se, com especial agravo ao nível dos maiores clubes, daqueles que, paradoxalmente, melhores condições teriam para aproveitar os frutos de um trabalho rigoroso, pensado, prospectivo, para os canecos dos escalões formativos. E forma-se assim, não necessariamente por culpa dos formadores, mas muito mais pela culpa de quem dirige os barcos: quer-se resultados. Mas a análise dos resultados está viciada à partida pela escolha dos factores de ponderação: em vez de se contar quantos jogadores acabam o processo formativo com capacidades acima da média, em vez de se contar quantos jogadores acabam por ascender à equipa sénior, são as tabelas classificativas dos campeonatos da formação que interessam, como se estes fossem o fim, em vez de um meio de aferir, de forma rude, o nível intermédio de consecução do processo (não desfazendo da necessidade de incluir, igualmente, a vertente competitiva do jogo, enquanto se forma). E, assim sendo, o termo da formação torna-se inelutavelmente o fim da linha para muitos potenciais ídolos da bancada: a quantos deles não é sequer dada a oportunidade de falhar, com ou sem estrondo? Parece que só em caso de cataclismo é que um clube olha para a sua formação numa outra perspectiva, a de uma ave progenitora que tem de proteger a sua prole mesmo depois de terminado o período de incubação. Num país com um mercado futebolístico tão exíguo, tão incapaz de se auto-alimentar sem receitas exteriores, vulgo transferências mais ou menos milionárias, este desperdício de capital acumulado é absolutamente incrível. Gastam-se rios de dinheiro a formar jovens que se irão afogar nos oceanos de dinheiro gastos a contratar lá fora, enquanto os cofres morrem à sede.
Tudo isto revela o quão desprovido de projectos pensados vive o futebol português, reflexo necessário do próprio país. Uma ideia, uma filosofia de clube, devidamente projectada na sua formação, serviria para cultivar rebentos futebolísticos adequados a um determinado estilo. Basicamente, formar de determinada forma é preparar com intuito, permitindo um conhecimento global de tudo o que constitui o recurso formado, incluindo as questões humanas, extra-futebol, nunca despiciendas, com uma amplitude a que nem amiudadas prospecções, observações, análises conseguirão jamais almejar. Outrossim, nada disto irá mudar enquanto não se alterarem dois dos pilares do pensamento retrógrado português: i) nem sempre o que vem de fora é melhor - só vale mesmo a pena ir lá se não houver por cá, pelo menos, tão bom; ii) a qualidade não tem idade - ou existe, ou não existe.
Enquanto se quiser apenas vencer na formação, em vez de vencer por se formar, a qualidade não existirá deveras no pequeno-grande panorama lusitano.

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